Fonte: Revista Catolicismo, Dezembro 1955 - Titulo original: "Apparuit
benignitas et humanitas Salvatoris nostri Dei".
A linguagem "sim, sim; não, não" - "pão, pão; queijo, queijo" (*)
Plinio Corrêa de Oliveira
Não se confunda o princípio de contradição, que é a quintessência da lógica,
da coerência, da objetividade, com o espírito de contradição. Este é um
vício que resulta do prazer jactancioso de contrariar o próximo: é volúvel,
e faz do sim o não, e do não e sim, conforme convenha à posição
arbitrariamente tomada de momento.
Somos um povo que tem o defeito de suas qualidades. Propensos habitualmente
a tudo que é bom, infelizmente não somos ao mesmo tempo infensos a tudo
quanto é mau. Em geral os outros povos, quando amam uma verdade, odeiam o
erro que lhe é contrário. E reciprocamente, quando amam o erro detestam a
verdade que a ele se contrapõe. Em última análise, é pelo jogo desse
princípio que se explicam as grandes fidelidades, como as grandes
apostasias. Na psicologia do brasileiro, o ódio explícito e declarado à
verdade e ao bem é raro. Neste sentido somos um dos melhores povos da Terra.
Mas quando se trata, para nós, de deduzir do amor à verdade e ao bem uma
atitude militante contra o erro e o mal, o caso é outro. E no fundo isto se
dá porque o princípio de contradição é antipático à pacatez brasileira. Uma
expressão muito conhecida exprime em linguagem popular o princípio de
contradição: "pão, pão; queijo, queijo". Mas em inúmeros casos confundimos
pão com queijo.
A bonomia na mentalidade do povo brasileiro
Esta tendência de espírito se reflete em muitos aspectos da nossa
mentalidade. O Brasil é uma República. Entretanto, em nenhum lugar o monarca
destronado e a monarquia deixaram mais saudades. Separamo-nos de Portugal
numa atmosfera borrascosa. Entretanto, no tratado em que a antiga Metrópole
reconhecia nossa independência, asseguramos a D. João VI até o fim de seus
dias o título de Imperador do Brasil. O quadro corrente, e por assim dizer
oficial, do Marechal Deodoro, proclamador da República, apresenta-o com o
peito constelado com as insígnias do Império que derrubou. Expulsamos em
1930 o Presidente Washington Luiz. Restaurado o regime constitucional,
regressou ele ao Brasil num ambiente de respeito e de simpatia tão gerais
que, com exceção de D. Pedro II, nenhum homem público reuniu em torno de si
unanimidade maior. Por que então foi destituído? Dessas pitorescas
contradições, poder-se-ia fazer uma longa lista. E o assunto Getúlio Vargas
forneceria a este respeito farta documentação.
"Seja vossa linguagem sim, sim; não, não"
Talvez, à vista destas reflexões, algum leitor sorria, como quem está em
presença de um amável defeito. Pois não deixa de ter algo de simpático e
tranqüilizador um tal cúmulo de bonomia.
Mas estudemos este assunto no terreno da moral. Trata-se de analisar esta
tendência psicológica, para ver se é conforme à Lei de Deus. E não é com
meros sorrisos, mas com muita seriedade, que se resolvem os problemas
morais.
Aquele que veio ao mundo para pregar as Bem-aventuranças nos deixou por
preceito que fôssemos fiéis ao princípio de contradição: "seja vossa
linguagem sim, sim; não, não" (Mt 5, 37). E se tal deve ser nossa linguagem,
tal deve ser nosso pensamento. Em matéria de moral, mais do que em qualquer
outra, todo excesso é um mal, ainda que seja de qualidades tão simpáticas
quanto a bonomia e a suavidade de trato. E um mal que, conforme o caso, pode
tornar-se muito grave.
Católico "não praticante", um termo cacofônico e antitético
Exemplifiquemos. No terreno religioso, não é bem verdade que o amortecimento
do princípio de contradição nos conduz com muita freqüência a atitudes
lamentáveis? Quantos são os católicos que se julgam no direito de discordar
da Igreja em algum ou em muitos pontos? Com isto, embora se ufanem de
católicos, pecam contra a fé. Por quê? Simplesmente porque imaginam possível
um tertium genus entre ser católico e não ser. O mesmo se diga da
naturalidade com que se admite entre nós uma categoria de católicos "não
praticantes"! Claro que os há no mundo inteiro. Mas parece-nos que em nenhum
país eles têm tão pouca consciência do que seu estado apresenta de
cacofônico, de antitético, em uma palavra, de contraditório.
Por fim, mais um exemplo. Quantas famílias temos, modelarmente constituídas!
Por que progridem as modas imorais? É que essas famílias, que prezam tanto a
virtude, são por vezes pouco enérgicas no combate ao vício. Em todos estes
casos, o que nos falta? Viveza no princípio de contradição lapidarmente
definido por Nosso Senhor, quando mostrou a incompatibilidade entre o "sim"
e o "não".
Este artigo se vai alongando. Não resisto entretanto ao desejo de indicar
outro exemplo. Todos se queixam da anemia de nossa vida partidária, de nossa
atonia em matéria de ideologia política e do predomínio das questões
pessoais em nossa vida pública. Uma das causas deste fato está na carência
do princípio de contradição. Pois, se em face de uma idéia que temos por
certa não nos arregimentamos para a defender resolutamente contra as que lhe
são opostas, como pode haver partidos de verdadeiro conteúdo ideológico?
"Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno..."
O amortecimento do princípio de contradição gera o gosto, a mania das
soluções intermediárias, eu quase diria a servidão às soluções
intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do meio, o que não é
carne nem peixe: é no que se cifra para muita gente toda a sabedoria. Ora,
se rejeitar por princípio as soluções intermediárias é um erro, erro também
é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a sabedoria as condena
formalmente: "Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno, começarei a
vomitar-te de minha boca" (Apoc. 3, 15).
A pessoa viciada em soluções intermediárias é a vítima ideal de todos os
velhacos. Pois a habilidade do velhaco consiste precisamente em fazer com
que o ingênuo aceite, com algum disfarce, aquilo que, a nu e sem maquilagem,
ele repudiaria. Os hereges são useiros e vezeiros em velhacarias desta
natureza. Rejeitado o pelagianismo, obtiveram eles a adesão de inúmeros
ingênuos por meio do semi-pelagianismo. Condenado o arianismo, puseram em
circulação o semi-arianismo. Condenado o protestantismo, inventaram o
bayanismo - heresia propugnada por Miguel Bayo (1513 - 1589), professor da
Universidade de Louvain (Bélgica) - e o jansenismo. Condenados o comunismo e
o socialismo, fabricam um "socialismo mitigado", que em última análise não é
senão comunismo velado. E assim por diante.
Erros que "serpeiam" entre os fiéis
Que essa tática é particularmente desenvolvida em nosso tempo, nada mais
notório. Estamos no século da 5ª Coluna. E que uma das formas mais hábeis de
solapar os meios católicos é esta, as mais altas autoridades eclesiásticas
de nossos dias já o disseram. Disse-o Sua Santidade o Papa Pio XII quando,
na Encíclica Mystici Corporis Christi, se referiu aos erros que "serpeiam"
entre os fiéis. Disse-o Sua Eminência o Cardeal Saliège, arcebispo de
Toulouse, quando afirmou em declaração mundialmente famosa que tudo se passa
como se houvesse uma ação articulada para "preparar no seio do Catolicismo
um movimento de acolhida ao comunismo" (cfr. Catolicismo, nº 37, janeiro de
1954, p. 8).
E assim, nada mais perigoso para o Brasil, nesta hora, do que o
amortecimento do princípio de contradição. E nada mais necessário do que
trabalhar para que, em nosso País, este princípio tome mais força, mais cor,
mais eficiência em toda a vida mental.
Não sei se um leitor não brasileiro compreenderá bem toda esta problemática.
Duvido bastante. Mas para um brasileiro isto é bem mais inteligível. E é
inteligível sobretudo para Vós, Senhor Jesus, que, deitado num berço
rústico, sondais entretanto até o fundo as almas e os corações. Para Vós
que, sendo a Sabedoria incriada e tendo nascido d'Aquela que é a Sede da
Sabedoria, conheceis totalmente a índole de cada povo, a todos amais, a
todos quereis santificar. Para Vós, que desde toda a eternidade tão
particularmente amastes o povo brasileiro e o predestinastes a uma grandeza
que encherá a história de amanhã.
Publicação feita para católicos militantes e praticantes, queremos que eles
Vos amem sem mescla de qualquer outro amor. Que só sirvam a um Senhor. Que
sejam cada qual em seu coração uma cidade sem divisão, contra a qual nada
pode o inimigo. Que não olhem para trás, ao empunhar o arado, e que no afã
de semear não se esqueçam de arrancar a erva daninha.
De certo modo os católicos militantes e praticantes são, também eles, sal da
terra e luz do mundo. Em parte depende da cooperação deles que o mundo não
se corrompa nem caia nas trevas. Queremos que eles sejam um sal muito e
muito salgado, uma luz posta no mais alto da montanha, e muito brilhante.
Neste sentido, Senhor, é nossa cooperação.
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(*) Essa versão foi adaptada pelo redatorial da Notícias-Lepanto. Quem
desejar ver o artigo na integra acesse:
http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=36221E68-3048-560B-1C381DD213FC13B6&mes=Dezembro2006&pag=1