domingo, 18 de março de 2007

Anti Americanismo

O Estado de S. Paulo, quinta-feira, 8 de Março de 2007

A ilusão anti americana
Demétrio Magnoli

O retrato dos EUA como um ogro devastador circula entre as esferas da
política e da academia, assumindo formas mutáveis, mas sempre adaptadas às
circunstâncias. Ontem, a acusação versava sobre o vício americano em
petróleo. Hoje, sobre um plano maléfico para disseminar a fome.

A visita de Bush desperta atenções inauditas, por óbvias razões geopolíticas
e económicas. Há mais que isso, contudo. Enquanto, no palácio, Lula assina
os protocolos de cooperação com aquele que Chaves qualifica como "demónio",
bonecos de Bush são queimados na rua por militantes do PT, da CUT e da UNE.
A parceria entre Lula e Bush está golpeando o tronco do anti americanismo
sobre o qual se ergue a copa da esquerda latino-americana.

Alain Rouquié, num título inspirado, qualificou a América Latina como o
"Extremo Ocidente". A conquista europeia semeou, nessa parte do mundo,
sociedades "inferidas", que querem ser Ocidente e se miram no modelo dos
EUA, a epítome da modernidade ocidental. Mas a América Latina é, ao mesmo
tempo, o "Terceiro Mundo ocidental", ou seja, um Ocidente incompleto, que
inveja e rejeita o seu modelo. Os EUA são alvo, em graus variados, de
ressentimentos no mundo todo. Mas só na América Latina o anti americanismo
figura como alicerce estrutural do pensamento de esquerda.

Em O Espelho Indiscreto, de 1976, o mexicano Octávio Paz reflecte sobre o
lugar dos EUA na produção da identidade de seu país. "A paixão dos nossos
intelectuais pela civilização norte-americana oscila do amor ao ódio e da
adoração ao horror. Formas contraditórias, porém coincidentes, da
ignorância: num extremo, o liberal Lorenzo de Zavala, que não vacilou em
tomar o partido dos texanos na guerra contra o México; no outro, os
marxistas-leninistas contemporâneos e seus aliados, os "teólogos da
libertação", que fizeram da dialética materialista uma hipóstase do Espírito
Santo e do imperialismo norte-americano a prefiguração do anticristo."

A Revolução Americana, fonte da primeira República contemporânea, inspirou
Simón Bolívar. Hoje, o programa dos "bolivarianos" é a unidade
latino-americana contra os EUA.

Durante a guerra fria, o anti americanismo da esquerda latino-americana
veiculava apenas a adesão a Moscovo e ao "socialismo real". A queda do Muro
de Berlim representou a perda de um programa, de uma visão de futuro e de
uma referência geopolítica. Socialismo converteu-se em pouco mais que uma
expressão vazia: no máximo, como acontece na Venezuela, algo a ser
reinventado, uma moldura em busca de uma paisagem. Do colapso restou um
sedimento ideológico, que é o nacionalismo e uma aversão romântica à
globalização. O anti americanismo sintetiza essa doutrina em fiapos, que
eventualmente funciona como ponto de encontro entre representantes dos
extremos do espectro político. Chaves incensa o iraniano Ahmadinejad, que
promove activamente o anti-semitismo.

Karl Marx escreveu, em Novembro de 1864, em nome da Primeira Internacional,
uma carta ao presidente americano Abraham Lincoln, congratulando-o por sua
reeleição, que assegurou a continuidade da guerra contra os confederados.
Nela Marx prestou homenagem à "grande República Democrática" e à sua
pioneira Declaração dos Direitos do Homem. O fio de continuidade entre
democracia e socialismo, imaginado pelos líderes de esquerda do século 19,
foi rompido pelos Estados totalitários do "socialismo real", no século 20. O
anti americanismo de esquerda dos nossos dias é um fruto retardatário dessa
ruptura histórica.

 

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