terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

PORQUE NÃO

PORQUE NÃO

 

Luciano Amaral

 

"Estive para não participar de forma nenhuma na discussão sobre o aborto suscitada pelo referendo de 11 de Fevereiro. Há bastante tempo que fiz a mim próprio a promessa, que genericamente cumpri, de não entrar numa discussão que antecipava saturada, estúpida, bárbara, cheia de asneiras de parte a parte. Infelizmente, creio que essas premonições estavam correctas.

O que é uma pena, porque há argumentos válidos de ambos os lados. O único problema desses argumentos é aparecerem misturados com cretinices fantásticas. Não participaria mesmo na discussão não fora darem-se duas

coisas: uma, o convite feito pelo meu amigo Francisco Mendes da Silva para participar no Blogue Do Não, coisa que recusei, mas não sem antes lhe prometer que pensaria num texto (e só um) para lhe enviar; outra, o facto de achar que, apesar de tudo, tendo eu uma opinião sobre o assunto, a deveria exprimir, embora mais sob a forma de statement do que de argumento para ser brandido em discussão. Daqui resultou este texto. Vale a pena dizer que ele não acrescenta nada de especial ao muito que já foi dito, conhecidos que são os (bons e maus) argumentos dos dois lados. Como digo, é uma tomada de posição, sem muitas pretensões.

Convém então começar por notar que os dois lados da discussão têm bons argumentos a seu favor, sendo talvez por isso que ela assume o aspecto extremado que temos visto. Ao reconhecer validade a argumentos dos dois lados não estou à espera de encontrar o tão enfadonho juste milieu em que alguns são especialistas. Muito pelo contrário, a minha posição é clara:

voto Não. Mas o facto de o outro lado também ter alguma razão, torna, evidentemente, a escolha mais difícil. Quais são esses bons argumentos? Do lado do Não, é o argumento da vida humana. Se aceitarmos que o aborto corresponde à supressão de uma vida humana, então não se pode deixar de criminalizá-lo e penalizá-lo. Do lado do Sim, é o argumento da prisão como pena desproporcionada para o acto de abortar. Se pensarmos que muitas das mulheres que abortam não o fazem por facilidade e malvadez, prendê-las parece efectivamente excessivo.

É aqui que entra a pergunta concreta que vai a referendo. E relativamente a ela eu não estou de acordo com os seus três elementos fundamentais. Não estou de acordo com a “despenalização” do aborto. Dado considerar que, a partir do instante em que existe um embrião, está em gestação uma vida humana que merece protecção jurídica, não posso concordar com a despenalização de quem suprime a sua existência. O ordenamento jurídico dos países que a maior parte de nós aprecia, incluindo o nosso, está vocacionado para a protecção da vida humana. Na nossa Constituição está escrito que a vida humana é “inviolável” (na americana, para dar outro exemplo, está que todos os cidadãos da república têm certos “direitos inalienáveis”, nomeadamente a “vida, a liberdade e a busca da felicidade”).

Despenalizar quem “viola” essa vida (ainda que seja a vida intra-uterina) corresponde a dizer que a lei é ineficaz para proteger uma parte do percurso dessa vida. Parece-me uma abdicação ilegítima.

Não estou de acordo que o aborto seja feito a “pedido da mulher”, pelo menos sem condições e qualificações. É evidente que o aborto é sempre feito a pedido da mulher, mas não é isso que está em causa. O que está em causa é se esse pedido deve ou não ser acompanhado de justificações. Podem ser justificações médicas, por exemplo, ou pessoais (basta aqui pensar na violação), que tornem o pedido aceitável à luz da lei existente. Mais uma vez, o “pedido da mulher” equivale a uma abdicação da lei em proteger uma parte do percurso da vida humana. Pode dizer-se (e tem-se dito) que, se aquilo que está em jogo é a vida humana, então algumas das excepções presentes na lei portuguesa não se justificam, sendo o caso mais claro a “violação”. Em última instância até seria verdade, não fora dar-se o caso de obrigar uma mãe a ter um filho nascido de um acto de coerção brutal corresponder a uma extrema desumanidade. Em vez de me parecer hipócrita (acusação que é brandida por muitos partidários do Sim) parece-me antes ser um dos pontos mais recomendáveis da corrente lei.

Finalmente, não estou de acordo que o aborto seja despenalizado se feito “até às dez semanas”, muito simplesmente porque é um limite (ou um limiar) que não entendo. Não há nenhuma razão para pensar que a partir das dez semanas exista um ente em desenvolvimento na barriga da mãe diferente do que existia à nona ou à oitava. As dez semanas não trazem nenhuma alteração qualitativa à vida em gestação que tornem aceitável a despenalização de quem pratica o aborto até então. Não existe, a partir da décima semana, uma vida que passe a merecer protecção jurídica diferente da que existia antes e, por isso, também este aspecto da pergunta é suficiente para eu votar Não.

Dir-se-á então que, permanecendo as coisas como estão, continua o problema da prisão das mulheres. É verdade, mas é aqui que tenho visto um espírito de compromisso da parte de alguns partidários do Não que acho muito interessante, nomeadamente quando se manifestam disponíveis para rever a moldura penal do aborto, substituindo a prisão por outras penas, como as pecuniárias ou o trabalho comunitário. Voltam a chover aqui as acusações de hipocrisia. Mas nas condições de um debate menos extremado, esta posição até deveria ser vista como mais um gesto de compromisso dos partidários do Não, que acabam por acolher a parte mais válida do argumentário adverso.

É por razões deste tipo, de resto, que sou a favor da actual lei. Ou seja, defendo-a, porque ela já é um compromisso, que pode aliás ser ainda mais compromissório. A actual lei deve ser preservada, precisamente porque é uma boa ilustração daquilo que constitui um enquadramento institucional pluralista. Cada um dos lados é obrigado a ceder em alguns pontos da sua opinião em nome da convivência na mesma comunidade política. Ganhando o Sim, a verdade é que esse equilíbrio compromissório se rompe."

Num rigoroso exclusivo BdN, deixo-vos a antecipação da "declaração de voto"

do Luciano Amaral, a qual será publicada na próxima Atlântico, já depois do referendo. Agradecemos ao Luciano a "caixa". Até à próxima sexta-feira contamos ter os manifestos de mais alguns amigos, os quais, por uma razão ou por outra, nunca aqui escreveram.

"Estive para não participar de forma nenhuma na discussão sobre o aborto suscitada pelo referendo de 11 de Fevereiro. Há bastante tempo que fiz a mim próprio a promessa, que genericamente cumpri, de não entrar numa discussão que antecipava saturada, estúpida, bárbara, cheia de asneiras de parte a parte. Infelizmente, creio que essas premonições estavam correctas.

O que é uma pena, porque há argumentos válidos de ambos os lados. O único problema desses argumentos é aparecerem misturados com cretinices fantásticas. Não participaria mesmo na discussão não fora darem-se duas

coisas: uma, o convite feito pelo meu amigo Francisco Mendes da Silva para participar no Blogue Do Não, coisa que recusei, mas não sem antes lhe prometer que pensaria num texto (e só um) para lhe enviar; outra, o facto de achar que, apesar de tudo, tendo eu uma opinião sobre o assunto, a deveria exprimir, embora mais sob a forma de statement do que de argumento para ser brandido em discussão. Daqui resultou este texto. Vale a pena dizer que ele não acrescenta nada de especial ao muito que já foi dito, conhecidos que são os (bons e maus) argumentos dos dois lados. Como digo, é uma tomada de posição, sem muitas pretensões.

Convém então começar por notar que os dois lados da discussão têm bons argumentos a seu favor, sendo talvez por isso que ela assume o aspecto extremado que temos visto. Ao reconhecer validade a argumentos dos dois lados não estou à espera de encontrar o tão enfadonho juste milieu em que alguns são especialistas. Muito pelo contrário, a minha posição é clara:

voto Não. Mas o facto de o outro lado também ter alguma razão, torna, evidentemente, a escolha mais difícil. Quais são esses bons argumentos? Do lado do Não, é o argumento da vida humana. Se aceitarmos que o aborto corresponde à supressão de uma vida humana, então não se pode deixar de criminalizá-lo e penalizá-lo. Do lado do Sim, é o argumento da prisão como pena desproporcionada para o acto de abortar. Se pensarmos que muitas das mulheres que abortam não o fazem por facilidade e malvadez, prendê-las parece efectivamente excessivo.

É aqui que entra a pergunta concreta que vai a referendo. E relativamente a ela eu não estou de acordo com os seus três elementos fundamentais. Não estou de acordo com a “despenalização” do aborto. Dado considerar que, a partir do instante em que existe um embrião, está em gestação uma vida humana que merece protecção jurídica, não posso concordar com a despenalização de quem suprime a sua existência. O ordenamento jurídico dos países que a maior parte de nós aprecia, incluindo o nosso, está vocacionado para a protecção da vida humana. Na nossa Constituição está escrito que a vida humana é “inviolável” (na americana, para dar outro exemplo, está que todos os cidadãos da república têm certos “direitos inalienáveis”, nomeadamente a “vida, a liberdade e a busca da felicidade”).

Despenalizar quem “viola” essa vida (ainda que seja a vida intra-uterina) corresponde a dizer que a lei é ineficaz para proteger uma parte do percurso dessa vida. Parece-me uma abdicação ilegítima.

Não estou de acordo que o aborto seja feito a “pedido da mulher”, pelo menos sem condições e qualificações. É evidente que o aborto é sempre feito a pedido da mulher, mas não é isso que está em causa. O que está em causa é se esse pedido deve ou não ser acompanhado de justificações. Podem ser justificações médicas, por exemplo, ou pessoais (basta aqui pensar na violação), que tornem o pedido aceitável à luz da lei existente. Mais uma vez, o “pedido da mulher” equivale a uma abdicação da lei em proteger uma parte do percurso da vida humana. Pode dizer-se (e tem-se dito) que, se aquilo que está em jogo é a vida humana, então algumas das excepções presentes na lei portuguesa não se justificam, sendo o caso mais claro a “violação”. Em última instância até seria verdade, não fora dar-se o caso de obrigar uma mãe a ter um filho nascido de um acto de coerção brutal corresponder a uma extrema desumanidade. Em vez de me parecer hipócrita (acusação que é brandida por muitos partidários do Sim) parece-me antes ser um dos pontos mais recomendáveis da corrente lei.

Finalmente, não estou de acordo que o aborto seja despenalizado se feito “até às dez semanas”, muito simplesmente porque é um limite (ou um limiar) que não entendo. Não há nenhuma razão para pensar que a partir das dez semanas exista um ente em desenvolvimento na barriga da mãe diferente do que existia à nona ou à oitava. As dez semanas não trazem nenhuma alteração qualitativa à vida em gestação que tornem aceitável a despenalização de quem pratica o aborto até então. Não existe, a partir da décima semana, uma vida que passe a merecer protecção jurídica diferente da que existia antes e, por isso, também este aspecto da pergunta é suficiente para eu votar Não.

Dir-se-á então que, permanecendo as coisas como estão, continua o problema da prisão das mulheres. É verdade, mas é aqui que tenho visto um espírito de compromisso da parte de alguns partidários do Não que acho muito interessante, nomeadamente quando se manifestam disponíveis para rever a moldura penal do aborto, substituindo a prisão por outras penas, como as pecuniárias ou o trabalho comunitário. Voltam a chover aqui as acusações de hipocrisia. Mas nas condições de um debate menos extremado, esta posição até deveria ser vista como mais um gesto de compromisso dos partidários do Não, que acabam por acolher a parte mais válida do argumentário adverso.

É por razões deste tipo, de resto, que sou a favor da actual lei. Ou seja, defendo-a, porque ela já é um compromisso, que pode aliás ser ainda mais compromissório. A actual lei deve ser preservada, precisamente porque é uma boa ilustração daquilo que constitui um enquadramento institucional pluralista. Cada um dos lados é obrigado a ceder em alguns pontos da sua opinião em nome da convivência na mesma comunidade política. Ganhando o Sim, a verdade é que esse equilíbrio compromissório se rompe."

 

Luciano Amaral

 



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